Sunday, October 26, 2008

Pés nus, alma agarrada.

Cortei os pés nos pedaços de vidro que deixaste no chão. Restos efémeros de uma janela que quebraste, só porque querias um pouco mais de ar, de liberdade. A ousadia de caminhar descalça fez com que o sangue borrasse a madeira tosca, como a tinta borra o papel, em jeitos imprecisos e confusos.
Dei os primeiros passos lentamente, sacrifiquei-me. E mesmo sentido a dor aguda causada pelos pequenos e infinitos cortes, continuei a caminhar. Ainda conseguia ver o teu vulto, ao longe, que se dissipava aos poucos, numa grossa nuvem de dúvidas. Continuei. E os constantes passos que dava iam-se transformando em abafados gritos de dor.
Outrora, com a vontade de te aprisionar, converti a força de te agarrar em pensamentos apagados pela saudade. A mão que te estendia, ficou frouxa, solitária, ao sentir a tua ausência, enquanto a distância entre nós aumentava. E então caminhei.
Entraste numa sala escura, onde as paredes não se fechavam. Sentaste-te a um canto, cansado de tanto fugir e, mesmo na escuridão, consegui vislumbrar o pequeno brilho que ainda guardavas nos teus olhos. Aproximei-me de ti, com passos lentos, até poder ouvir novamente a tua respiração, senti-la no meu pescoço, como se fosse um quente abraço. Mas não te agarrei.
Ao longe, uma janela embaciada pela lua atraía-te. Num rápido e doloroso segundo, levantaste-te, quebraste o vidro azul, e deixei de te ver. Sustive a respiração, talvez por não querer acreditar que te tinhas ido embora, talvez por não me querer sucumbir à tentação de te perseguir e, ao último suspiro, numa última tentativa, caminhei.
Não sei de ti, não sei de nós. Por mais que te apresses, em corridas sem destino, acabas sempre a um canto, onde me olhas com ternura, onde me queres, sem o querer.
Descobri hoje que os restos da tua liberdade me cortam os pés. E dói. Não por querer, mas por não o merecer. E sangra, não de mim, mas do ontem apressado, do hoje naufragado e do amanhã destruído. Simplesmente, dói.

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